Conferência D. Manuel Clemente
Encontro Eclesial para o Reencontro do Mundo
Manuel Clemente
Agradeço-vos muito o amável convite para partilhar convosco algumas reflexões sobre a temática do “encontro”, como indubitável realidade humana e indispensável exigência cristã.
Indubitável realidade humana, dizia, ainda que alguém a considerasse dispensável. E não menciono isto em vão, pois, de facto, alguma sensibilidade contemporânea mais se ensimesma do que procura os outros. Nem faltou quem filosofasse que «o inferno são os outros», enquanto nos limitassem a realização individual.
Há um apetite de autocriação que tolera pouco ou nada o contraste ou desafio que os outros sempre são. Há um sentimento forte de que só por mim serei eu e quanto menos condicionado for pelo que os outros queiram ser para mim, ou queiram que eu próprio seja.
Daqui que, em todos os patamares duma existência forçosamente coletiva, tantos desencontros se sucedam e tantos encontros ou reencontros demoradamente esperem. Se olharmos agora para a realidade portuguesa que nos toca, muito mais repararemos em desencontros do que em encontros: das famílias – feitas, refeitas ou rarefeitas – aos grupos que sucessivamente se combinam, descombinam ou recombinam; dos conflitos sociais de vária ordem e à dificuldade em encontrar e manter políticas combinadas; das muitas exceções a qualquer regra, que logo contradizem o seu enunciado; do apetite cultural pelo contraste, que mistura aplausos com apupos e desconfia à partida do fim feliz de qualquer história…
Perpassa em tudo isto a desconfiança pós-moderna em relação a meta-narrativas prévias e conformes, que, da esquerda à direita, se revelaram geralmente frustrantes. Compreendamos e concordemos que, até certo ponto, tal desconfiança foi um ganho. Mas não é forçoso que, para não nos alienarmos num futuro qualquer, nos alienemos agora da realidade viva que os outros sempre são. Real e consistentemente são, e não virtualmente e à distância dum delete.
Compreendamos também que a deriva individual que hoje impera, nesta derradeira fase dum liberalismo que redundou em libertarismo, deixando de conjugar as liberdades de todos para se resumir nos desejos de cada um, só é possível onde chegou o crescimento material e a disponibilidade acrescida para viver de modo aparentemente autónomo. A modernidade e a pós-modernidade são sobretudo europeias de raiz e a desagregação contemporânea só foi possível com mais dinheiro para alguns – e apesar de tudo muitos mais do que alguma vez tínhamos sido, quando eramos gregários pela força das circunstâncias.
Também não é por acaso que hoje se recuperam ligações, familiares ou outras, exatamente quando minguam as possibilidades de alguém se sustentar por si. A bolha que rebentou também nisto revelou o grande vazio que a preenchia.
Não voltaremos atrás, mas temos de recuperar algo de essencial que já esquecíamos. Trata-se, fundamentalmente, da nossa natureza social, comunitária – numa palavra, “pessoal”. E é precisamente no triunfo do pessoal ou relacional sobre o individual que desenvolveremos a cultura do encontro.
Basicamente, trata-se da visão cristã das coisas. Refletindo sobre a pessoa de Jesus, o que dizia e o modo como procedia, as primeiras gerações cristãs logo entenderam que nada nele se resumia a si próprio, mas sempre e em tudo na relação com o Pai. A relação que tinha com os outros transbordava do relacionamento íntimo que mantinha com aquele Outro donde ele mesmo brotava: Jesus, o Pai e o Espírito entre eles circulante, permanente encontro da mesma Vida partilhada.
Há dois mil anos, as grandes civilizações antigas encontravam-se finalmente em redor do Mediterrâneo. E foi então, quando a humanidade se encontrou, que, humanizando-se em Jesus de Nazaré, Deus se encontrou com ela, para se revelar a si mesmo como encontro, comunhão e partilha. Daí que Jesus diga com inteiríssima verdade «Eu estou no Pai e o Pai está em mim» (Jo 14, 11). Daí que, pouco depois, um dos autores do Novo Testamento possa dizer: «Todo aquele que ama, nasceu de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor» (1 Jo 4, 7-8), isto é, encontro.
Do Novo Testamento nos chegam também as sugestivas indicações de Paulo, considerando-nos – aos discípulos de Cristo – com um grande “corpo” que só vale pelo todo, no encontro de partes conjugadas. Como, por exemplo, escrevendo aos romanos: «Num só corpo há muitos membros, e esses membros não têm todos a mesma função. O mesmo acontece connosco: embora sendo muitos, formamos um só corpo em Cristo, e, cada um por sua vez, é membro dos outros» (Rm 12, 4-5).
Somos, os cristãos, gente mutuamente encontrada, na conjugação harmónica do que cada qual transporta para o todo. Há vinte e cinco anos, a exortação apostólica pós-sinodal Christifieles Laici, carta magna do laicado contemporâneo, expressava-o também, retomado a doutrina fulcral do Vaticano II. Depois de lembrar que, segundo a constituição dogmática sobre a Igreja, esta mesma, «em Cristo, é como que o sacramento, ou seja, o sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» (LG 1), logo acrescenta: «A realidade da Igreja-Comunhão […] representa mesmo o conteúdo central do “mistério”, ou seja, do plano divino da salvação da humanidade. Por isso, a comunhão eclesial não pode ser adequadamente interpretada, se for entendida como uma realidade simplesmente sociológica ou psicológica. A Igreja-Comunhão é o povo “novo”, o povo “messiânico”, o povo que “tem por cabeça Cristo” […] Os laços que unem os membros do novo povo entre si – e antes de mais com Cristo – não são os da “carne” e do “sangue”, mas os do espírito, mais precisamente, os do Espírito Santo, que todos os batizados recebem» (Christifideles Laici, 19).
Unidade e comunhão que só em Cristo se radicam e no seu Espírito se garantem. Como se disséssemos que o encontro com os outros arranca do encontro que Deus tem connosco em Cristo, potenciando-nos absolutamente para reencontrarmos os outros no que também têm de essencial – como expectantes de encontro, precisamente. Toda a missão cristã se define como busca dos outros para partilharmos o encontro que tivermos. Logo no início do quarto Evangelho, por exemplo: «André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que ouviram as palavras de João [Batista] e seguiram Jesus. Ele encontrou primeiro o seu irmão Simão e disse-lhe: “Encontrámos o Messias (que quer dizer Cristo)”» (Jo 1, 40-41).
Também encontramos aqui a nossa idade sociológica e eclesial, como sobejamente se manifesta. E a mencionada exortação apostólica verificava-o bem e até em contraste com o que se passava antes: «Nestes tempos mais recentes, o fenómeno da agregação dos leigos entre si assumiu formas de particular variedade e vivacidade. Se na história da Igreja tal fenómeno representou sempre uma linha constante, como o provam até aos nossos dias as várias confrarias, as ordens terceiras e os diversos sodalícios, recebeu, todavia, notável impulso nos tempos modernos que têm visto o nascimento e criação de múltiplas formas agregativas: associações, grupos, comunidades, movimentos. Pode falar-se de uma nova era agregativa dos fiéis leigos» (Christifideles Laici, 29).
Como se dissesse que o grande encontro, ou a sua moldura externa, se replicou em múltiplos encontros mais espontâneos, em vidas doutro modo conjugadas. Por exemplo, dos anos sessenta para os setenta, a grande organização geral do apostolado que se chamou Ação Católica Portuguesa (cerca de cem mil filiados na altura) foi dando lugar a muitas outras realidades, intensas e convictas, mas muito menos articuladas entre si.
Agregamo-nos – ou encontramo-nos – doutro modo, é um facto. Para quem já passou os cinquenta ou sessenta anos de vida, é evidente que o modo como chegou à fé e à prática cristã era geralmente muito diferente do que hoje acontece para um número cada vez maior de pessoas. Quase “nascíamos” cristãos, verdadeiros filhos daquela igreja e comunidade concreta em que éramos batizados, catequizados e prosseguíamos a militância cristã, quando tal acontecia. Aliás, era isso que significava a palavra “freguesia” = conjunto dos filhos duma igreja (templo) geograficamente situada e sob a proteção do seu próprio orago.
Era também a este tecido denso que correspondia a organização geral do apostolado, que a Ação Católica Portuguesa em grande parte conseguiu ser. Mas, na última metade do século XX, a nossa Europa mudou como sociologia e agregação de crenças e motivações. A geografia descaracterizou-se muito, a topografia igualmente e nós desgarrámo-nos de tradições consolidadas. Brevemente, o encontro deixou de ser prévio e garantido e passou a ser casual ou hipotético. A comunidade deixou de ser o lugar donde somos, para passar a ser o lugar onde vamos ou deixamos de ir – pouco comunitário portanto.
A não ser que sejamos encontrados por realidades mais transversais e atraentes – duma atração concreta que “me diga alguma coisa a mim” e onde eu diga qualquer coisa aos outros, com rostos definidos, propostas mobilizadoras e lemas assumidos. Onde se juntem, em suma, as aspirações de cada um com a necessidade de agir e reagir conjuntamente, mais a partir do grupo cooptado para o geral a atingir, do que ao contrário.
E tudo isto para que o mundo se reencontre também. Temos algo a dizer como cristãos e o mundo espera que lho digamos, de facto. Somos impelidos a dizer-nos enquanto crentes e comunidade de crentes. Retenhamos a propósito outro trecho da Christifideles Laici, aqui particularmente acertado: «A agregação dos fiéis leigos por motivos espirituais e apostólicos brota de várias fontes e vai ao encontro de diversas exigências: exprime, de facto, a natureza social da pessoa e obedece ao imperativo de mais vasta e incisiva eficácia operativa. […] E isso é particularmente verdade no contexto da sociedade pluralista e fragmentada – como é, em tantas partes, a do mundo atual – e perante problemas enormemente complexos e difíceis. Por outro lado, sobretudo num mundo secularizado, as várias formas agregativas podem representar para muitos uma ajuda preciosa em favor de uma vida cristã coerente com as exigências do Evangelho e de um empenhamento missionário e apostólico» (ibidem).
Podemos perguntar-nos, finalmente, como garantir o encontro eclesial e a missão, numa sociedade de encontros múltiplos e tão interpessoalmente acontecidos. A isto continua a responder o importante número 30 da citada exortação apostólica, adiantando os «critérios de discernimento e de reconhecimento das associações laicais, também chamados “critérios de eclesialidade”».
São eles:
1) O primado reconhecido à vocação de cada cristão à santidade;
2) A responsabilidade de professar a fé católica;
3) O testemunho de comunhão sólida e convicta (com o Papa, o Bispo e as outras formas de apostolado na Igreja);
4) A conformidade e a cooperação na finalidade apostólica da Igreja;
5) O empenho de presença na sociedade humana (que, à luz da Doutrina Social da Igreja, se coloque ao serviço da dignidade integral do homem).
Significa tudo isto que, após encontros tradicionais e mais ou menos garantidos, deparamo-nos agora com encontros verdadeiramente assumidos com uma fé cristã concretizada em comportamentos e obras, a partir de diversas conexões pessoais e grupais, unificadas pelo propósito de servir o mundo na Igreja de todos, com o Evangelho de sempre.
“Na Igreja de todos”, disse, mesmo que “comunidade de comunidades”, ou “família de famílias”. Trata-se sempre, ainda que sob o impulso de alguma proposta de encontro que nos tocou e incluiu mais de perto, de viver e testemunhar aquela “comunhão” essencial em que a Igreja do Vaticano II se definiu. Ou, como indicam os Bispos portugueses na Nota Pastoral de 11 de abril último, intitulada Promover a renovação da pastoral da Igreja em Portugal: «Formar comunidades que sejam autênticas escolas de vivência da fé e da comunhão, gerando entre todos os seus membros laços de fidelidade, de proximidade e de confiança, que se traduzam no serviço humilde da caridade fraterna. É este o caminho para avivar o sentido de pertença à comunidade e para fortalecer os laços de comunhão, que é a primeira forma de missão, de acordo com a Palavra de Jesus, Bom Pastor: “Nisto todos saberão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros”» (Jo 13, 35).
O mundo há de reencontrar-se, mais à frente; e o encontro mútuo dos cristãos adianta tal fim, desse modo assinalado.
Coimbra, Conferência Nacional de Associações de Apostolado dos Leigos, 16 de novembro de 2013